Por que ter um Dia do Homem?

15/07/2011

Nas andanças pela internet, descobri pelo blog do Leonardo Sakamoto que dia 15 de julho é Dia do Homem no Brasil. Assim como ele, não tinha a mínima ideia disso. Sei que existe um movimento por um Dia Internacional do Homem, reconhecido pela Unesco, mas com a data de 19 de novembro. Não sei por que o dia brasileiro é diferente. A pergunta óbvia a se fazer é: por que ter um dia do homem? De acordo com o que diz a Wikipedia sobre o dia internacional, ele serve para se focar em questões de saúde masculina, promover igualdade de gêneros e destacar modelos masculinos positivos, além de “combater o preconceito ao homem e celebrar seus feitos e contribuições, em particular contribuições para a comunidade, família, casamento e cuidados infantis”. São pontos para se discutir, mas não sei se ajuda muito. Ainda não explica por que se criar um dia desses. Vou discutir a questão, com a ajuda da Wiki para organizar os argumentos, e tentar expor por que eu acho que é uma data que deve sim ser comemorada.

Impossível não associar ao Dia da Mulher, 8 de março, que começou na antiga União Soviética em 1913. É fácil ver por que ele existe. Desde muito tempo vivemos numa sociedade patriarcal, em que as mulheres foram relegadas a funções e papéis subalternos. Durante todo o século 20, elas lutaram por igualdade, e em alguns lugares avançaram bastante, mesmo que ainda não a tenham alcançado plenamente. Vale para todo grupo oprimido: datas comemorativas ajudam a aumentar a consciência para o problema e a visibilidade do grupo. Mulheres, negros, índios, LGBTs e outros, todos têm datas para comemorar suas lutas. Datas inevitavelmente deturpadas para virarem alguma outra coisa, mais festiva e menos reflexiva, mas enfim.

Inevitável perguntar: mas se o homem não sofre opressão de ninguém, pra quê? É fácil confundir com outras iniciativas, tipo o tal “dia do orgulho heterossexual” que foi discutido não muito tempo atrás. Sofrem pela falta de bom senso. Quando um grupo oprimido quer visibilidade, é parte da luta; quando um grupo não-oprimido faz a mesma coisa, só esfrega na cara o fato de que não é oprimido, a ainda tem um gostinho de arrogância preconceituosa. A Lola explica isso muito bem, vão lá pro post que fala disso no blog dela.

Então, de novo: pra quê? Não é a mesma situação? Ou vai dizer que o homem sofre opressão? Pois sofre. O homem (ainda, infelizmente) é dominante na sociedade, mas não ser dominado não é a mesma coisa que não sofrer opressão. A diferença é que ela não vem de um grupo acima na pirâmide de poder, mas de toda a sociedade, inclusive (e talvez principalmente) do próprio homem.

A relação homem-mulher é diferente de qualquer outra do tipo dominador-oprimido (como brancos-negros/índios, ou héteros-LGBTs, por exemplo). Não tenho aporte teórico para fazer um estudo aprofundado dessas questões, então isso é “só” discussão da realidade, e não tese acadêmica, mas vamos lá. Primeiro, homens e mulheres são de fato seres diferentes, seus corpos são diferentes, muito além de detalhes como cor de pele; têm diferentes papéis reprodutivos. Segundo, você pode imaginar uma sociedade com uma só etnia, religião, comportamento sexual (não confundir com orientação sexual). Mas não existe sociedade só de homens ou só de mulheres. Se há uma divisão da qual não pode se escapar, é essa. Esses fatores deixam essa divisão muito mais complexa que qualquer outra. Não há apenas dominador-dominada, há todo um espectro de percepções, papéis e funções de gênero que definem nossa percepção de homens e mulheres.

Durante o processo de emancipação feminina, as mulheres discutiram tudo isso em relação a elas: qual o papel da mulher na sociedade? o que é ser mulher? o que é ser feminina? quais os preconceitos que a mulher sofre? Já os homens, do alto do trono, no máximo cederam poder. Nunca se submeteram aos mesmos questionamentos. O pouco que mudou do papel masculino foi mais por inércia, com a mudança do mundo pelo feminismo, do que por autorreflexão. É aí que um Dia do Homem têm importância fundamental: fazer acontecer todo esse debate.

O homem também tem que se libertar de seus papéis, impostos em boa parte por si mesmo para um mundo que felizmente não existe mais. Assim como a mulher, o homem precisa se emancipar do patriarcado. A dominância não faz com que seu papel de gênero seja menos alienante ou empobrecedor, ou que ele não seja vítima de inúmeros preconceitos. Além disso, por ser visto como dominante, muitas vezes recebe menos atenção quando é vítima, seja de mulheres ou de outros homens. Ao contrário do que possa parecer, um Dia do Homem não precisa ter nada de antifeminista ou de exaltação do patriarcado, muito pelo contrário.

Existe uma lista enorme de questões a se discutir para uma libertação do homem de seus papéis de gênero, e para a luta por direitos iguais e contra o preconceito:

  • maior conscientização quanto a problemas de saúde: o homem tende a achar que é invencível e não se preocupar tanto com a saúde, menos ainda com problemas particularmente masculinos. Fora o “ninguém vai meter dedo no meu cu, não!”
  • ainda em saúde: há sociedades em que o clitóris de meninas é retirado por razões religiosas, e isso atrai comoção quase universal. Em compensação, a circuncisão, que também é mutilação genital, é considerada nada de mais. No mínimo, respeitada como ritual judeu (aí pode), no máximo usada nos EUA em quase todos os recém-nascidos como “política de higiene”.
  • educação: meninos ainda aprendem que precisam ser fortes, não podem demonstrar fraqueza, não podem ser vítimas, sempre vitimadores. Além das consequências óbvias, como incentivar a agressividade, há outras menos perceptíveis: por exemplo, é muito mais provável que meninos não denunciem quando são vítimas de abuso sexual.
  • Aliás, falando em abuso sexual, é um foco de preconceitos. O crime é sempre diminuído quando a vítima é homem, seja o estuprador homem ou mulher. Aliás, há lugares onde o crime de estupro sequer considera a vítima masculina. Também há quem ache que é impossível um homem ser estuprado por uma mulher. Além disso, considere o caso das prisões: todo mundo sabe que o estupro corre solto, mas não há nenhuma medida contra isso, só piadas. Imagine se as prisões fossem mistas e as vítimas,  mulheres: será que a reação seria a mesma?
  • Um assunto correlato é a violência doméstica. Muita gente sequer considera que um homem pode sofrer violência doméstica. Mesmo que seja mais rara que a violência contra a mulher, ela existe. A nossa própria (ótima) Lei Maria da Penha é geralmente tratada como uma lei para proteger apenas as mulheres, quando deveria ser considerada uma proteção a qualquer vítima de violência doméstica. Imagine como fica uma vítima masculina? Que coragem, que incentivo tem ela de fazer uma denúncia? Que esperança tem de que a justiça seja feita? Mais fácil imaginar até o juiz rindo da cara do coitado.
  • Voltando às prisões: quase toda a população carcerária é de homens. Quantos estudos há sobre isso, que ajudem a determinar a causa? Quantas políticas há para combater essas causas?
  • Direito familiar: foi aqui que muito do movimento pelos direitos dos homens surgiu. Há uma tendência de que questões como guarda dos filhos, pensões alimentícias, visitas, sejam julgadas em desfavor do pai.
  • Pais também têm direito a quase nenhum tempo de licença-paternidade.
  • Na cabeça de muitas pessoas, ainda é responsabilidade e dever do homem prover para sua família.
  • Homens são teoricamente obrigados a servir o exército. Quer mais preconceito que isso?
  • Na maior parte do mundo, a maioria dos suicídios é de homens. Quantas políticas há para resolver o assunto?
  • Propagandas de Bom-Bril (produzidas por homens!) podem dizer que homem é ser não evoluído, que não presta, que é estúpido. Misandria pode; se fosse misoginia, duvido que passava incólume.

Enfim, dá pra ver que assunto não falta para se discutir num Dia do Homem. Para reforçar: a lista acima compara situações entre homens e mulheres, mas é para demonstrar o preconceito inerente nas diferenças de tratamento, não para culpá-las ou dizer que o preconceito vem delas. Ele vem dos homens também, muitas vezes com mais força.

Homens, ainda precisamos nos discutir muito. Se precisar fazer um dia pra isso, que seja.